Nós da Editora Anacruse preparamos esse texto especial, que contém algumas reflexões sobre o papel da música na sociedade e na vida pessoal de cada um que a prática. Essa é uma leitura fundamental para que o professor possa criar um significado mais profundo sobre o trabalho com a música, tanto para si mesmo, quanto para as escolas do Brasil. Em tempos em que nossa sociedade passa por um período altamente utilitarista e imediatista fizemos a seguinte pergunta: para que serve a música?
Observando a pirâmide de Maslow, que contém as necessidades básicas do ser humano, podemos perceber que a arte, ou mais especificamente, a música, não está inserida explicitamente nesta categorização. Contudo, podemos questionar: porque então a música está presente em todas as culturas e épocas que temos conhecimento?
Para iniciar nossa reflexão, podemos citar um trecho do livro Psicologia da Arte, no qual Vygotsky estabelece uma relação direta entre o surgimento e a existência da música com a dor e a angústia gerada pelo trabalho:
Portanto, podemos atribuir uma primeira função à música que é a de “dar vazão ao sentimento”. Esse caráter sensível, afetivo, emocional da música é por si só motivo que justifica sua existência. A sublimação da tensão angustiante e o “alívio” que o canto pode nos trazer conferem um caráter de sobrevivência, de cura, e de necessidade vital à música. Citando Vitor Hugo: " A música expressa o que não pode ser dito em palavras mas não pode permanecer em silêncio”
Dentre as mais diversas atribuições e características humanas, uma delas é que o ser humano simplesmente faz música. Sem ela, por definição, o homem ficaria incompleto, perderia seu sentido do todo. Portanto, a música é parte do homem. Para apropriar-se de sua cultura, o homem tem que conhecer sua música, ou melhor, fazer música (no sentido mais amplo do termo). A música como cultura sempre se dá num contexto social específico, trazendo para quem a pratica o sentido de “pertencer”, trazendo noções de identidade, de construção da personalidade e do caráter do indivíduo.
Podemos então afirmar que, como parte do homem, a música também é a representação ou o reflexo deste, dentro de um determinado tempo e espaço. Conhecer a música de determinada cultura, é conhecer o homem inserido em seu contexto social, em uma de suas manifestações mais legítimas. Mesmo que cada indivíduo construa seu conjunto de significados em relação aos determinados tipos de música, ela sempre pertence a um grupo e uma época, já que não temos como isolar o homem da cultura na qual ele está inserido. Citando novamente Vygotsky e seu livro “Psicologia da Arte”:
Portanto, a música pode ser uma chave para o conhecimento de si mesmo e do outro. Quando ouvimos a música de uma determinada cultura, ali estão contidos elementos que refletem o homem daquele espaço e daquele tempo em toda sua complexidade. Como cita o sociólogo francês Jacques Attali:
Portanto, a música e a educação musical são fundamentos para uma educação mais integra e mais humana. O mínimo que o trabalho com a música nas escolas poderia fazer é colocar a criança entre em contato com o maior número de gêneros musicais possíveis, propiciando assim um alargamento de sua cultura e consequentemente do chamado “gosto” musical. Quando damos a oportunidade para que a criança entre em contato com essa riqueza de ritmos, gêneros e estilos, estamos expandindo a sua cultura, alargando as fronteiras de seu território estético e do seu sentido de “pertencer”.
Podemos arriscar dizer que o nosso “gosto” é formado pela combinação da gama cultural em que estamos inseridos, com o sentido interno que damos as nossas escolhas estéticas. Podemos citar um trecho do livro “Pedagogia da Música - experiências de apreciação musical”, no qual as organizadoras Esther Beyer e Patrícia Kebach ilustram muito bem nossa discussão:
Continuando nossas reflexões a respeito do trabalho com música, podemos afirmar que, do ponto de vista da Cognição, a música é uma das atividades mais complexas do ser humano e a que mais estimula diferentes áreas do cérebro. Podemos citar como referência o livro “A música no seu cérebro”, no qual, o autor Daniel Levitin, descreve o processo cognitivo e neuronal que ocorre quando ouvimos música:
Portanto, a importância em se criar um ambiente musical, tendo como a base a diversidade, recai também sobre o desenvolvimento do aparato perceptual da criança em relação à música; em outras palavras, quanto mais ouvimos ou executamos diferentes tipos de música, mais nosso cérebro tem que criar conexões e sinapses para decodificar aqueles sons e atribuir-lhe significado. O inverso também ocorre, quanto mais restritos ao mesmo tipo de música, mais acomodado fica o cérebro, e menos desenvolvimento este terá. Por isso, temos em mãos uma grande oportunidade para que a criança entre em contato com a diversidade musical e, o ambiente escolar, talvez seja um dos poucos locais onde isso seja possível, pois percebemos hoje que muitos pais não propiciam esse ambiente em casa. Sem entrar em juízo de valores, vivemos nos últimos anos uma enorme capitalização e massificação da cultura e da arte, o que pode levar a criança a ter acesso apenas ao que está na mídia e ao que está na “moda”. Não vemos problemas quanto à isso, mas sim quanto à restrição que ocorre quando a criança não tem acesso ao que lhe seria vital quanto ao desenvolvimento musical.
Observamos nos tempos atuais que, se por um lado o acesso a informação permite que as crianças ampliem a quantidade dos saberes, isso não nos garante a qualidade dessas informações, muito menos propiciam vivências ou experiências que sejam significativas para seu desenvolvimento como ser humano. Podemos ainda citar, dentro do contexto da cognição, que a prática musical e o contato com os instrumentos musicais trabalhem diversas regiões do cérebro ao mesmo tempo, despertando por exemplo as partes responsáveis pela motricidade, desenvolvendo a coordenação motora, a lateralidade, a coordenação fina de movimentos, e ainda, os vários tipos de memória (visual, sensorial, afetiva, auditiva, sinestésica, entre outras), os aspectos específicos da linguagem musical e suas correlações com outras áreas como a da linguagem, da matemática, da dança, entre outras.
Em relação às necessidades sociais, ao cantar ou ao tocar um instrumento em grupo, a necessidade de comunicação, e de pertencer a algo maior, não somente é exercitada como fortalecida. Podemos incluir aqui o caráter sagrado da música encontrado também em inúmeras culturas, em seus cânticos sagrados, seu poder de cura e seu papel mediador perante a determinados santos e deuses existentes nas mais diversas culturas e épocas da história da humanidade.
A música e o corpo estão intrinsicamente ligados. A prática musical, assim como a dança, inclui o desenvolvimento de inúmeras habilidades motoras e cognitivas.
Através da superação de cada “obstáculo”, (que pode ser motor ou cognitivo, ou de qualquer outra natureza), o caminho do desenvolvimento da linguagem musical contribui imensamente para a necessidade de “gostar de si mesmo”, ou seja, de possuir autoestima - condição básica para o desenvolvimento do ser humano integral.
Quanto às necessidades de autorrealização, entendemos que um indivíduo autorrealizado, é um ser que almeja e atinge objetivos que considera importantes para seu estado de “felicidade”.
O exercício musical é uma forma excelente para desafiarmos os nossos potenciais internos. Aprender música é como aprender a viver. Necessita de motivação, paciência, leveza, planejamento, disciplina, aceitação, objetividade e perseverança, sendo essas algumas das qualidades que pretendemos desenvolver nesse Projeto de Educação Musical da Anacruse.
Para encerrarmos momentaneamente as reflexões e discussões sobre o sentido da música e da educação musical no ambiente escolar, podemos citar um trecho do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil que resume bem o que abordamos ao longo desse texto:
“a integração entre os aspectos sensíveis, afetivos, estéticos e cognitivos, assim como a promoção de interação e comunicação social, conferem caráter significativo à linguagem musical(...). A música está presente em todas as culturas, nas mais diversas situações: festas, comemorações, rituais, manifestações. Existe música para adormecer, música para dançar, para chorar, para dar coragem, para pensar e em muitas outras finalidades do nosso cotidiano. Ela faz parte da educação desde há muito tempo, sendo que, já na Grécia antiga era considerada como fundamental para formação de futuros cidadãos, ao lado da matemática e da filosofia. A linguagem musical é excelente meio para o desenvolvimento do respeito mútuo, do equilibrio emocional, do desenvolvimento da auto estima, além de trazer consigo a concentração, disciplina, coordenação motora, e também um poderoso meio de integração social.
Contudo, o que nos move em direção à prática musical é sempre o prazer. Tocar, ouvir, cantar deveria ser sempre muito gostoso, se não o é, algo errado ocorreu ao longo do caminho. O prazer estético e a vivência do “belo” contribui para a formação de um olhar positivo perante a vida. A música (e a arte de maneira geral) pode nos ajudar a construir um belo “óculos” para enxergamos o mundo com mais sentido, significado e beleza.
TEXTO COMPLEMENTAR DO CURSO.