Com a implementação da Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, a música torna-se conteúdo obrigatório nas escolas públicas em todo o Brasil. Com isso surge uma grande oportunidade para reconstruirmos essa história e revermos os objetivos, os conteúdos e as metodologias utilizadas nessas aulas dentro das escolas.
Podemos iniciar nossas reflexões levantando uma primeira questão: quem serão os profissionais responsáveis por essas aulas?
Depois de um intervalo de quase quarenta anos sem música nas escolas, sabemos que não existe no Brasil um número suficiente de educadores musicais que poderiam atender a demanda de todas as escolas do país. Um outro problema grave é que, dentre esses educadores musicais, poucos tem a formação pedagógica ou a experiência necessária para as aulas de música dentro do contexto escolar, sendo em sua maioria músicos instrumentistas que tiveram sua formação voltada para a prática específica de algum instrumento musical e não para as aulas nas escolas. Por outro lado, alguns municípios vêm investindo na capacitação de educadores (de artes, de educação física e os polivalentes) para que esses mesmos possam lidar com o material musical dentro do ambiente escolar ao qual já estão habituados. Contudo, muitos desses educadores não tiveram, nem na infância, nem no currículo do curso de pedagogia (ou artes), uma formação adequada para trabalhar com os conteúdos musicais dentro da escola.
Nós da Anacruse pensamos que, a longo prazo, ambas as frentes serão contempladas: profissionais de música com formação em pedagogia, assim como, pedagogos com formação musical direcionada para suas aplicações dentro do contexto escolar. Porém, para que isso ocorra, será necessário um aumento na quantidade e na qualidade dos cursos de licenciatura e de pós graduação em música em todo o país e também a inserção dos conteúdos musicais no currículo dos pedagogos. Entretanto, a capacitação de professores tem sido uma saída que tem dado excelentes resultados, tendo em vista a demanda dessa lei, que por um lado é tão urgente e por outro tão “genérica”, que não específica nem quem vai dar essas aulas, nem como ou quando serão dadas. A proposta da Anacruse nesse primeiro momento, passa pela construção de projetos interdisciplinares e pelo olhar da “música como cultura”, tendo como fim o desenvolvimento humano (e não a formação de músicos). A música é assunto presente na vida de qualquer ser humano, em todas as épocas e culturas que temos conhecimento. Portanto, o objetivo principal da proposta da Anacruse é retomar essa forma natural e inata de se fazer música, resgatando as brincadeiras da infância e também o direito que todos nós temos de nos expressarmos através dessa que é uma das mais legítimas manifestações o homem.
A educação musical como a entendemos, começa no Brasil sem uma data precisa, já que desde seus primórdios a música esteve sempre presente nas culturas indígenas espalhadas por todo território nacional. Para eles, a música era indispensável; fazia parte dos rituais e do cotidiano e era transmitida de geração em geração.
Com a chegada dos jesuítas, a educação musical tomou um outro rumo. Os primeiros missionários já se utilizavam dessa poderosa ferramenta para catequisar e “educar” os nativos, segundo a tradição europeia cristã.
No início do século XIX, um outro fator relevante na história da música brasileira, foi a vinda da família real para o Brasil. Com ela vieram muitos instrumentos musicais e um fortalecimento da tradição de ensino musical voltada para o repertório erudito europeu.
Se dentro dos salões ocorriam os grandes “bailes” e festas ao som das valsas, polcas e mazurcas escritas nas partituras, lá fora o “batuque” corria solto com suas tradições e ritmos efervescentes. A relação dos nossos ancestrais Africanos com a música era tanto ritualística, quanto a de entretenimento. A dança e o ritmo serviam de base para a sublimação e para a catarse das angústias e dores sofridas na época da escravidão, sendo seus toques e seus cantos passados através da tradição oral.
Contudo, encontramos ainda hoje em algumas escolas brasileiras (tanto públicas, quanto particulares), um resquício do ensino de tradição europeia, com professores provindos dos Conservatórios que focam demasiado o ensino da leitura e da teoria musical; ou ainda, quando esse ensino é focado apenas na flauta doce e na reprodução de pequenas peças do repertório erudito ou folclórico. Esse tipo de ensino nos remete ao ensino musical praticado no século XIX, tanto na Europa quanto no Brasil, em que o foco era formar músicos virtuosos, especializados na tradição da música europeia e que iniciavam sua prática desde a primeira infância, valorizando aqueles que possuíam certo “dom” ou “talento” especial para a música. Essas concepções sobre música e sobre educação musical, por incrível que pareça, ainda estão arraigadas em nossa cultura, havendo ainda hoje certo mito em torno do “talento musical”, como se o caminho de educação musical fosse destinado para “poucos”.
Contudo, o século XX trouxe profundas inovações e importantes questionamentos a respeito do ensino da música. Podemos citar alguns dos principais educadores que romperam com o ensino tradicional da música e que trouxeram muitas contribuições para a Educação Musical. Em 1903, o suiço Jacques Dalcroze, sentiu que seus alunos muitas vezes desenvolviam uma boa leitura, uma boa técnica, porém muitas vezes lhe davam a sensação de que a música “estava fora deles”. – “Se você tirasse a partitura da frente desses músicos, a música não acontecia”. Com isso, Dalcroze criou uma série de exercícios que desenvolviam a música através do próprio corpo, buscando assim formas para que a música estivesse “dentro”, incorporada e internalizada. Depois dele surgiram outros grandes nomes da Educação Musical como Edgar Willens que trabalhava com a percepção dos sons e a apreciação musical; Carl Orff, que propunha a prática com instrumentos e a improvisação como meio para a aquisição da linguagem musical; o japonês Suzuki que criou uma metodologia de ensino de instrumento baseado no desenvolvimento da linguagem (a criança aprende a falar imitando os sons e depois aprende a escrever); o compositor Murray Schaffer que propunha o desenvolvimento musical através da Escuta, (e que podemos conhecer melhor sua proposta em seu importante livro “O Ouvido Pensante”); e ainda, o húngaro Kodály que tinha como base o canto e o resgate do folclore nacional. Foi esse último que influenciou diretamente o músico e compositor brasileiro Villa Lobos, que trouxe ao Brasil uma metodologia de ensino musical que priorizava o canto, o solfejo e um repertório que valorizasse a cultura nacional. Aliado ao governo Getúlio Vargas, o chamado “canto orfeônico” de Villa Lobos ocupou lugar de destaque durante décadas no ensino musical brasileiro.
Contudo, a educação musical foi perdendo sua força nas escolas públicas do Brasil, até que em 1971 foi criada a disciplina Educação Artística, que englobava música, teatro, dança e artes plásticas, sendo que a música já não tinha mais um caráter obrigatório nas escolas brasileiras.
Portanto, estamos há mais de 40 anos sem ensino musical nas escolas públicas do Brasil. Com isso, é muito interessante observar como os municípios de todo o Brasil estão se movimentando em relação à reconstrução dessa trajetória, que, como vimos, mostrou-se de certa forma tortuosa e inconstante.
O objetivo principal da proposta de Educação Musical da Anacruse não é formar músicos, mas sim fazer com que a criança entre em contato com a diversidade musical, tendo como principal objetivo o desenvolvimento humano. Nosso trabalho visa a apropriação da cultura brasileira, não apenas a cultura de massa, mas o resgate das brincadeiras tradicionais da infância, assim como o contato com os grandes nomes de nossa música, como: Tom Jobim, Noel Rosa, Chico Buarque, Edu lobo, Vinícius de Moraes, entre tantos outros. Além da apropriação da própria cultura, esse projeto visa também a expansão desse território cultural, através do contato com músicas de outras culturas: música norte-americana, música erudita europeia, música indiana, africana, árabe, oriental, cubana, dentre tantas outras espalhadas pelo mundo. Por isso, o repertório indicado para educação musical não pode ser apenas o repertório infantil, muito menos o repertório em voga na mídia, mas sim um repertório que inclua a diversidade, tanto dentro da música brasileira em toda sua amplitude de territórios, épocas e manifestações (o samba, a bossa, o choro, o baião, o maracatu, o frevo, dentre tantos outros), assim como as músicas ao redor do mundo, como o jazz, o rock, o funk, a salsa, o reggae, a música clássica, a música africana, indiana, árabe e o que mais for possível para a ampliação do repertório da criança e consequentemente para a ampliação de sua visão de mundo. Como cita o educador alemão Koellreuter: “A música é em primeiro lugar, uma contribuição para o alargamento da consciência e para a modificação do homem e da sociedade”.
No contexto escolar, o desafio para nós educadores, é garantir a diversidade musical através de atividades em que a criança, ao mesmo tempo, amplie seu olhar e aprofunde suas experiências. Torna-se também importante levantarmos a questão do planejamento em aulas e a criação projetos musicais, no qual estejam incluídos, além de um repertório musical diverso, uma gama de atividades que abranjam as diversas habilidades que são os potenciais a serem desenvolvidos dentro do campo dos estudos e vivências em música.
Podemos citar aqui alguns dos principais pilares para Educação Musical propostos pela Anacruse :
Para finalizar, podemos citar Howard Gardner em sua “Teoria das Inteligências Múltiplas” na qual ele considera a Inteligência Musical, como uma das oito principais inteligências do ser humano. Poderíamos criar, como forma de repensarmos a diversidade de habilidades dentro do universo musical o que chamaríamos “Inteligência Musical Múltipla”.
Muitas vezes o chamado “talento musical” é relacionado apenas à habilidade em se tocar bem um instrumento, porém, a habilidade motora é apenas uma das múltiplas habilidades em música. Uma pessoa que pode ter um ouvido muito desenvolvido, pode não saber se expressar muito bem corporalmente, ou, uma pessoa que tem facilidade com ritmo, pode não ter facilidade em criar novas melodias por exemplo. Portanto, dentro do ambiente escolar, onde o objetivo da educação musical não é formar músicos, temos à nossa disposição uma riquíssima diversidade de modos de relação com a música. Temos, todavia, o desafio de criar experiências e vivências significativas que possam trazer o desenvolvimento para nossos educandos, não apenas no que diz respeito à aquisição da linguagem musical, como também na formação do caráter e na educação do indivíduo como ser humano.
TEXTO COMPLEMENTAR DO CURSO.